quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Segundos cruzados


O furgão trafega em alta velocidade, atrasado para uma entrega de duzentas caixas, a última do dia. Motorista e carregador preocupados, a demora não foi sua culpa, mas sabem que a bronca cairá neles. Faltam oito minutos. Os times se alternam no placar e os ânimos estão exaltados. Pressão sobre os árbitros. Tudo se encaminha para uma decisão nos segundos finais. Cinco minutos. Próximo a uma favela o asfalto é irregular e o trânsito intenso. A grande quantidade de gente circulando aumenta a insegurança do lugar. Crianças sem pátios brincam pelas calçadas. No cruzamento da avenida, a sinaleira muda para o amarelo. O furgão acelera para atravessar o sinal. Na transversal, um caminhão-caçamba aumenta a velocidade quando percebe o sinal passando para o verde. Com o choque, o furgão é arremessado contra um poste na diagonal oposta. Os vidros se quebram com o impacto, a porta da câmara frigorífica se escancara. Mães aflitas correm a conferir seus filhos que brincavam soltos na rua. Tumulto. Menos de um minuto. A partida empatada e o time azul tem dois lances-livres a seu favor. O jogador bate a bola no chão duas vezes, respira fundo, flexiona os joelhos, arremessa. A bola bate na ponta do aro, gira no ar, rebate na tabela e cai para o lado. Onze segundos. O furgão está rodeado pelos moradores da vila, em torno de cinquenta pessoas ou mais. Xingam o motorista imprudente, gritam. Cercam o furgão, de olho na carne que está ali, debaixo de seus narizes. O motorista conversa com os agentes de trânsito, pressente o perigo, solicita ajuda policial. Os agentes querem liberar o tráfego, mas com o povo em volta é impossível. Acionam a Brigada Militar. O jogador respira fundo, olha para o aro, respira de novo. A flexão dos joelhos é mecânica, o arremesso é suave, direto para a rede. Um ponto de vantagem. Fundo bola para o time amarelo, cronômetro correndo. O armador tem uma quadra inteira para atravessar. Dez segundos. Só era preciso que houvesse um primeiro. Empurrou o motorista, agarrou duas caixas e saiu correndo. Os demais avançam como uma locomotiva, pegando os volumes conforme o seu tamanho permite, dois, três, os mais fortes com quatro. Motorista e carregador chegam a esboçar uma reação, mas percebem ser inútil. Apenas ficam acompanhando. Oito segundos. O armador do time amarelo vem batendo a bola com velocidade. Na cabeça do garrafão para o drible. A marcação relaxa por um instante. Ele arranca novamente e entra na bandeja. Cinco segundos. Duas viaturas atendem ao chamado da central. Ligam suas sirenes e disparam para o local do acidente. Quatro segundos. Carrega a bola em sua mão direita. A defesa acompanha o movimento. A bola é trocada de mão e o corpo muda de rumo. A defesa tenta se recompor. Traz a bola novamente para a mão direita e a arremessa num meio gancho contra a tabela. O barulho no ginásio é grande, o juiz apita, a mesa toca a sirene de final de jogo enquanto a bola continua rodando no aro. Dá três voltas e não entra. O juiz do fundo corre apitando em direção à mesa, o outro em direção à linha do lance-livre. Falta, dois lances. Cronômetro zerado. Da mesma forma que vieram, foram-se todos, deixando apenas o furgão depenado. O motorista e o carregador sentam-se no meio-fio, olhos vidrados, o susto custa a passar. Lembram que ainda não entraram em contato com o frigorífico. Os agentes de trânsito, como se nada tivesse acontecido, dirigem-se ao caminhão-caçamba para falar com o seu motorista. Pega a bola para o primeiro lance-livre, respira, cochicha para ela e arremessa. Jogo empatado. Os brigadianos chegam com estardalhaço, armas em punho, mas só conseguem arrancar sorrisos disfarçados de alguns curiosos que se encontram nas imediações. O armador se prepara para o segundo arremesso. Segue o mesmo ritual, respira fundo, cochicha alguma coisa para a bola e arremessa. A noite vai ser de festa.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

As flores do jardim

Todo mundo tem sua hora de diabo, que fica marcada para a vida inteira, por mais que tente esquecer. Às vezes se tem a chance de cair na realidade e voltar atrás, mas em geral a gente se afunda até o pescoço e só acorda quando não resta mais nada a ser feito.
– Não ficou bonito?
– É, ficou.
– Não falei? Para que pagar uma grana para uma dessas empresas vir aqui e fazer o mesmo que nós, ou pior. Com o dinheiro economizado dá para decorar o salão de festas. E fazemos nós também, porque esses arquitetos são muito careiros.
Nunca havia utilizado o revólver antes. Só tirava do armário para a manutenção. Andava pensando em me desfazer dele. Afinal, as crianças estavam crescendo, e Deus me livre que alguma delas encontrasse a arma no armário e pegasse para brincar. Mesmo não guardando carregado, sempre haveria o risco. Basta assistir televisão para saber como carregar um revólver. Já tinha ouvido sobre alguns acidentes de crianças que se mataram com a arma dos pais, usando como se fosse um brinquedo. Nem fui eu quem a comprou, ganhei de presente de casamento, de um cunhado, militar. Ele dizia que um homem de verdade tinha que andar armado. Cada ideia. Sempre fui uma pessoa de boa paz. É verdade que tem vezes que a gente se irrita com algumas bobagens, explode, é normal, mas comigo era difícil de acontecer.
– Pai, rápido! O filho do vizinho do 301 estragou todas as flores que a gente plantou.
O jardim estava revirado, com marcas de pneus de bicicleta por toda parte. O garoto não estava mais ali. Sem alternativa, só restava bater na porta do apartamento. Era um vizinho novo, enorme e com jeito de quem gostava de aproveitar o seu tamanho avantajado.
– Não quero saber de nada. De que adianta um pátio se as crianças não podem aproveitar. Para que serve este jardim? Para as tuas visitas acharem bonito? Meu filho vai brincar onde bem entender.
– É melhor que não.
Ele mal escutou o que eu disse, pois já tinha batido a porta na minha cara. Voltei para casa indignado. Tirei o revólver do armário, carreguei e o escondi na cintura, por trás, embaixo da camiseta. Até hoje não entendo porque fiz aquilo, devia estar pressentindo o pior. Fui para o jardim e comecei a plantar novamente as flores amassadas.
Não demorou muito e o guri retornou com a bicicleta. No início apenas dava voltas sobre o piso de cimento. Aos poucos foi invadindo a grama e os canteiros. Talvez fosse impressão minha, mas parecia que ele me olhava com um jeito desafiador, a cada atropelada que dava nas flores. Tudo que eu queria era arrumar o jardim sossegado, descansar a cabeça. Por que tinham que existir esses chatos? E ele continuava a dar voltas, cada vez mais perto das flores. Acabei gritando para ele.
– Será que tu pode parar de estragar o jardim?
– Meu pai disse que eu podia andar onde quisesse.
– Mas não pode.
Disse aquilo e, ao mesmo tempo, tomei sua bicicleta e a tranquei na garagem. Acho que está lá até hoje. O menino subiu correndo e foi chamar seu pai. Em minutos, estavam de volta.
O grandalhão chegou me peitando. Ele estava pronto para me encher de porrada. Num instante, já tinha enfiado a arma no seu nariz. Ele ficou branco, um fantasma, começou a gaguejar.
– Ô, vizinho! Que é isso?
– Quem é que vai me dar porrada agora? Tu acha que eu sou louco para sair no braço contigo? Olha o teu tamanho!
– Pera aí, cara. Vamos conversar.
– Agora quer conversar? Quando eu quis conversar tu bateu a porta na minha cara.
Puxei o cão do revólver, com o som metálico do mecanismo ele estremeceu. Um peteleco no gatilho, e haveria um monte de merda espalhada na calçada.
– Ainda não ouvi o teu pedido de desculpas.
– Desculpa.
– Hein? Não ouvi! Fala mais alto.
– DESCULPA.
– Não quero mais saber do teu filho estragando o jardim.
– Certo, certo.
Virei as costas e fui entrando no prédio, quase voltando ao meu estado de consciência normal. Chegando na porta, escuto o seu murmúrio.
– Cagão. Aposto como não tem coragem de atirar.

Ele estava errado. Merda de vizinho. Acho que não teria sido uma grande perda. Mas foi pior, o filho dele se atravessou na minha frente.

domingo, 27 de outubro de 2013

Frango de resort


Nunca soube de quem foi a ideia de criar galinhas num resort. A mim pouco importa, afinal, para que fique claro desde já, eu sou um frango, quase um galo. Nasci e moro neste resort de luxo, de uma praia isolada em um recanto tropical. Desde cedo me diferenciei de meus familiares. Último entre dezessete pintinhos, por muito tempo fui o menor de todos. Compensava a pouca estatura com a rapidez, bastante força, e um raciocínio acima da média.
Nasci na baixa temporada, o que significa dizer que, neste período, as crianças que apareceram por aqui eram muito pequenas e não representavam perigo; ou seja, nenhuma que estivesse em idade escolar. Esses hóspedes chegam de toda parte do país, e também do estrangeiro. Chamei a atenção de todos logo no primeiro mês de vida. Minha mãe e minhas tias estavam longe; por alguma razão nosso pai estava tendo uma discussão com elas. Melhor para nós, aproveitamos o descuido para brincar na praia. Não sabíamos nada sobre o mar, então corríamos distraídos pela areia, até mesmo entrando um pouco na água. Num instante aprendemos que a maré sobe, e ela nos surpreendeu e nos arrastou. Minhas irmãs saíram piando feito loucas para chamar os adultos. Até alguns banhistas vieram, atraídos pela balbúrdia. Não sei explicar como consegui, mas corri com tanta força que escapei da água e ainda tirei dali alguns de meus irmãos. Mas nem tudo deu certo, meu irmão mais velho nem os banhistas conseguiram resgatar. De qualquer forma, todas as galinhas ficaram muito agradecidas e me abraçaram bastante. Já o pai não falou nada, apenas ficou me olhando de cara séria. Como havia afirmado, minha fama cresceu, e mesmo os empregados do resort viam em mim um pintinho especial. Acho que eu gostava da emoção, pois depois disso mantive o hábito de correr por todos os cantos da praia, e mesmo dentro da água, mas isso nunca contei para os outros.
Mas chegou o verão, a alta temporada, e com ela o nosso tormento, crianças grandes. Incrível a sua capacidade de fazer maldades. Minha sorte é que, embora parecesse, já não era mais um pintinho. Por mais que tentassem não conseguiam me acertar nenhuma pedrada. Os empregados faziam o possível para evitar, mas os moleques pegavam os seixos brancos que enfeitavam os canteiros de flores sempre que esses se distraíam. Entre as crianças havia uma em especial, que todos diziam ser um demônio. Minhas irmãs, umas bobocas, sofreram muito com as pedradas. Algumas ficaram mancas, outras, cegas. E meus irmão menores, bem, vários não chegaram à minha idade.

Pensei num plano para acabar com a perseguição, mas tinha que convencer meus irmãos, inclusive os pequenos, a participar. Apesar dos riscos, concordaram. Além disso, precisaria de um pouco de sorte, pois tudo tinha que ocorrer na hora certa. Comecei a provocar o menino sempre que podia. Quando ele estava sozinho, passava correndo por perto para que tentasse me acertar com uma pedrada; de vez em quando até deixava passar uma de fininho, só para deixá-lo com mais raiva. Quando ele estava na piscina infantil, perto dos pais, meus irmãos os distraiam e eu vinha pela praia, dava umas bicadas em sua mão e, em seguida, voltada correndo pelo mesmo caminho. Fiz isso várias vezes, até que ele chorasse de raiva. E foi assim até chegar o momento certo. Ele estava na piscina sem os pais por perto. Os pintinhos se aproximaram e ele se fez de desentendido, cuidando com o rabo do olho a hora em que eu apareceria. Fui chegando com cara de tonto, ciscando pelo chão, até ficar bem perto. Ele se abaixou um pouco dentro da água, fingindo que não me via e, de repente, saltou na minha frente com uma pedra em cada mão. A primeira pedrada passou longe. Corri para a praia, em direção ao banco de areia com ele no meu encalço. Precisava de só mais alguns segundos. Enquanto isso, da saída para a praia, meus irmãos faziam a maior algaraviada, atraindo hóspedes, empregados e galinhas. Eu sabia que ele não ia querer desperdiçar a segunda pedra. Parou de correr para caprichar na mira enquanto cortei de volta em direção à praia. A maré alta veio com uma onda forte que o derrubou e o afundou no buraco. Os empregados, vendo o que aconteceu, correram feito doidos e o tiraram do mar, desacordado. Fui para um recanto mais vazio da praia e acompanhei a movimentação. Chegou uma ambulância para prestar socorro. Dois homens ficaram em volta do menino por um bom tempo e depois, com as caras tristes, o levaram dali. Mais tarde me disseram que seus pais foram embora do hotel. Foi quando vi, no alto de uma duna, que o pai olhava na minha direção. Na hora eu soube que, dali para frente, o assunto seria de galo para galo.

domingo, 7 de julho de 2013

Filocladenos


Quando chega o inverno Ramiro se desespera. Os dias frios e cinzentos, o excesso de umidade, as poucas horas de luz; tudo contribui para tentar diminuir seu ânimo. Todavia, o inverno e seus efeitos colaterais nada mais significariam para ele do que uma mera passagem do tempo, não fossem os filocladenos das cauchoranas.
Antes não tinha do que se queixar. Seguia a rotina sem quaisquer problemas. Acordava cedo, preparava o chimarrão e, depois de uns três ou quatro amargos, seguia para a lida. As tarefas diárias como peão de estância eram bastante simples: limpar e cuidar da bicharada e fazer o mesmo com as plantas do jardim do patrão. Até aí nada de complicado, eram serviços que fazia com rapidez e esmero; com uma mão amarrada nas costas, como se dizia. E assim foi até o dia em que o patrão resolveu trazer do estrangeiro uns bichos muito estranhos, que até achou bonitos, mas não tinham, aparentemente, qualquer serventia: as cauchoranas. Quando chegaram foi uma grande sensação.
Ramiro nunca tinha visto um daqueles, de fato, sequer supunha a sua existência. Têm o tamanho aproximado de um pônei, porém de patas mais finas e compridas. Na maior parte do tempo são quadrúpedes, mas ficam sobre as patas traseiras, quando necessário ou quando bem entendem, vá saber, como se fossem cangurus. Os machos diferem das fêmeas em alguns aspectos. O mais óbvio em relação à genitália, neste caso, semelhante aos cavalos. Sendo que o pênis da cauchorana é grotescamente maior que o de um garanhão, enquanto que a fêmea, por sua vez, tem quatro tetas. Outro aspecto é o rabo, que no macho é de pelos longos e coloridos e, na fêmea, pelado. O corpo também lembra o dos cavalos, porém mais cilíndrico, como uma salsicha bock gigante, e de pelagem macia e variada. Esta, por sinal, é diversificada como a dos cavalos, porém com mais alternância de cores. A cara também lembra a dos cavalos, só que mais acarneirada e de olhar sorumbático. As orelhas são compridas como a dos burros e, na testa, os machos têm um buraco descarnado e fundo, enquanto as fêmeas têm dois, igualmente feios. Perguntou ao capataz por que os bichos tinham aqueles buracos e recebeu como resposta que era por causa dos filocladenos, e que precisava ser assim. Não entendeu a explicação, mas ficou com pena dos bichos só de ver aqueles olhos tristes.
As cauchoranas, apesar de tamanho inferior ao dos cavalos, comem muito mais, principalmente no outono e no inverno, quando se reproduzem. Nesta época se alimentam três vezes mais que nas outras estações para dar conta de seu apetite sexual. Na primavera Ramiro entendeu, finalmente, o que são os filocladenos e por que importaram as cauchoranas. Nasceu a primeira geração de filhotes na estância, pequenas cauchoranas desengonçadas. Desenvolviam-se rapidamente, um pouco antes do verão os filocladenos cresciam em suas testas. Lindo de ver, parecido com marfim, embora seja uma guampa, mas de brilhos que variam do verde ao rosa, resultado de pequenos veios coloridos que cobrem a superfície dos chifres. No final do outono as cauchoranas já eram adultas e teriam suas aspas arrancadas. Caso esperassem mais, o chifre ficaria cinzento e sem brilho. Não entendeu por que tirar o chifre de um bicho manso, mas o capataz explicou que o patrão os venderia por uma fortuna para uns países da Ásia, onde são considerados afrodisíacos. Ramiro, mesmo sem saber o que era afrodisíaco, entendeu a parte em que o patrão ganhava uma fortuna.
Eram necessários quatro homens para aparar as guampas, três somente para segurar o bicho. Nunca tinha visto um animal sentir dor por tirar guampa, mas aqueles sentiam muita, e em seguida ficavam com os olhos tristes. Aquela noite foi inesquecível, a peonada mal conseguiu dormir. As cauchoranas gemeram sem parar e continuaram assim por mais algumas semanas. Os dias mais curtos e a chuva trouxeram o inverno de volta. Frio, mais chuva, os bichos gemendo, mesmo Ramiro, acostumado na lida campeira, sentia um desconforto que não sabia explicar. Era um trabalho sem nenhuma satisfação. Até os cavalos, companheiros na lida diária, andavam estranhos, irritadiços e corcoveantes, derrubavam os cavaleiros por qualquer comando mais ríspido. No auge do inverno as cauchoranas silenciaram ao mesmo tempo em que já vinham se alimentando como loucos. Logo em seguida começaram os machos a pular sobre as patas traseiras, correndo atrás das fêmeas, para sossegar somente na primavera.

Depois de cinco invernos Ramiro mudou-se para longe da fronteira. Comprou uma pequena gleba na serra, onde mora e tem uma roça. Gastou o resto das economias na compra de um trator usado, não queria um animal nem mesmo para montar. Enquanto não consegue tirar o sustento do trabalho na terra, arrumou serviço numa indústria das redondezas. Acorda cedo, prepara o chimarrão e, depois de uns três ou quatro amargos, vai para a avícola. Luva de borracha numa mão, cutelo na outra, passa o dia como um autômato, cortando pescoços de galinhas.

domingo, 16 de setembro de 2012

Senjiro Matamoto



Senjiro já matou vários guerreiros em combate, mas nunca daquele jeito, e o que se revelou o deixou bastante surpreso. Seu oponente era um bom esgrimista, tão bom quanto ele, o que tornou a disputa bastante acirrada. O final da luta, quando se trata de embates desta natureza, sempre é a morte. Não foi um golpe de sorte, mas a única alternativa. O oponente atacou, Senjiro deu um passo para trás e tropeçou. Num átimo, o adversário percebeu o desequilíbrio e golpeou com violência, trazendo sua espada de cima para baixo em direção ao corpo do samurai, que, com reflexo impressionante, girou o tronco no ar e contra-atacou em um movimento de gancho, decepando a cabeça do inimigo.
O inusitado ocorreu nesta hora. De uma forma que não compreendeu, viu passar em sua frente toda a vida do adversário. Em instantes, conheceu e absorveu sua história e treinamento. Foi como se tivesse recebido, como troféu, a alma de seu oponente. A experiência o deixou ligeiramente perturbado, mas o calor da batalha não permitiu ao guerreiro maiores reflexões. Ainda naquela tarde teve mais dois enfrentamentos, vencidos com facilidade, mas da maneira convencional. Ao anoitecer recolheram os mortos e as armas e voltaram ao acampamento, onde descansariam para os próximos combates.
No dia seguinte saíram cedo para o campo de batalha, uma névoa fina parecia deixar todos os movimentos mais lentos. Um silêncio pesado dominava a floresta. Senjiro Matamoto e seus companheiros marchavam dispersos, sem contato visual. Súbito, um inimigo pula de uma árvore sobre ele, que apara o ataque levantando a espada acima da cabeça. Sem titubear, gira o corpo da esquerda à direita, levando o braço na direção do inimigo, que se aprontava para novo golpe. E o inesperado, mais uma vez, acontece. Outra cabeça que voa, mais uma alma que absorve. Talvez pelo silêncio, talvez pela névoa, desta vez ponderou sobre a responsabilidade de tornar-se detentor de uma alma tão poderosa. Contudo, o fato o deixou mais sereno e consciente de suas habilidades. Ainda no mesmo dia, entre várias baixas infligidas ao inimigo, teve oportunidade de cortar mais duas cabeças. Desta vez de forma objetiva, pois seus golpes foram desferidos com esta intenção.
Foi bastante festejado por seus companheiros e elogiado pelos superiores. Em outras circunstâncias, e tinha plena noção disso, tamanha bajulação o teria afetado. Mesmo tendo feito por merecer, permaneceu tranquilo, sem demonstrar qualquer atitude de soberba. Era um guerreiro, fazia o que precisava que ser feito, nada mais do que isto. Descansaram alguns dias e partiram para as montanhas, onde se defrontariam com a casa Yoshibawa, tida como das mais fortes. Sabia que não teriam lutas fáceis, que deveria ser pragmático e não pensar nas almas de seus oponentes. A ação é mais importante que a emoção. Seguiram seu caminho sem pressa, sabendo que toda reserva de energia seria necessária. O encontro com o adversário se deu sob o forte sol do meio-dia. As duas facções se viram frente a frente e partiram para a batalha. Como previsto, foi uma luta equilibrada. Logo em seu primeiro embate, defrontou-se com um jovem guerreiro muito hábil, que recém havia liquidado um de seus companheiros. Trocaram golpes estudados, buscando, cada um, encontrar uma brecha que permitisse o ataque derradeiro. Seu oponente era esperto e o levou a ficar de costas para uma parede de pedra, o que lhe restringia as possibilidades de movimento. Tinha que raciocinar rápido para escapar daquela limitação. Aproximou-se ainda mais da parede e ofereceu seu flanco para um golpe, que veio imediatamente. O cálculo foi acertado. Com rápida esquiva a espada do jovem inimigo atingiu a pedra, ficando trancada em uma fenda. Senjiro, prontamente, golpeou o seu braço, mas errou. Apenas acertou a espada do inimigo, que se partiu.
Mal se reposicionou, percebeu que o adversário tinha uma adaga em sua mão. Seria uma luta diferente, em que o jovem buscaria o corpo a corpo para fugir dos golpes longos da espada. Uma estratégia arriscada e que não deu certo. Em sua primeira investida, visando a garganta de Senjiro, recebeu contragolpe fulminante. O samurai dá um passo para trás e se ajoelha. Durante o movimento gira a espada sobre a cabeça e a coloca alinhada ao corpo, em seu lado direito, como se estivesse com o braço aberto. Mais uma cabeça que rola. O corpo ainda teve um pequeno movimento, como se fosse autômato, e a alma veio, mas não como das outras ocasiões. Apesar da luz do sol, viu com clareza de detalhes, e isso o afetou profundamente. E o que enxergou de diferente naquele instante foi uma mulher. Nunca tinha visto ou escutado a respeito. Sempre pensou que a guerra fosse uma arte masculina, jamais se imaginou atacando uma mulher, por mais valente e habilidosa que pudesse ser, como de fato era. Caiu prostrado de joelhos, largando a espada sobre o chão. Nem percebeu o golpe que lhe arrancou a cabeça.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O sorriso das vacas Jersey



O que lhe parece melhor, o cheiro ou o sabor? A carne está a uma distância calculada sobre a brasa; o sal grosso, distribuído sobre a peça conforme a experiência ordena, ajuda a aguçar o sabor e a refinar o aroma, deixando-a ainda mais atraente. Sem razão alguma, começa a pensar nos milhares de anos de experiência que determinaram a escolha do melhor gado, das carnes mais macias e saborosas. No princípio, com instrumentos rudimentares, talvez não se tivesse noção de quais eram as melhores partes. Com o passar do tempo o gado resignou-se em ser alimentado, tendo ou não ciência de que acabaria virando refeição, e o homem, em contrapartida, montou uma cadeia de valores de acordo com o corte e espécie bovina.

Uma série de pensamentos contraditórios afloram em sua cabeça. O principal era o fato de, em pleno estado criador do churrasco, esta ser para ele uma atividade furtiva. Sim, logo ele, que sempre apreciou uma boa churrascada, acabou escolhendo para sua namorada uma vegana radical. Era algo quase impossível de se imaginar. Mas, afinal, ela é muito gostosa (os prazeres da carne, sempre os prazeres da carne). Assim, o que deveria ser um deleite ao paladar, vinha com um misto de culpa embutido. E se ocorresse de ela chegar em sua casa e ainda encontrar resquícios do banquete pantagruélico, o sexo, é claro, estaria descartado. Pior, isso depois de uma longa explanação acerca das atrocidades humanas, com descritivos detalhados de como foram mortos os animais. Era normal, depois disso, ter longos períodos de abstinência, nos quais o simples pensamento provocava engulhos. Numa hora a singela imagem de uma vaca Jersey, com seu sorriso doce e olhos com delineador permanente. Logo a seguir, sua carantonha mutilada, o couro despregado da carne e os olhos esbugalhados sobre as órbitas em osso puro. Levava semanas, meses talvez, até dissociar as imagens e conseguir tratar carne fresca e bicho vivo como coisas diferentes. Nessa hora o fogo mostra o seu poder trazendo o cheiro, imbatível.
E de novo vem sua namorada apontar o quanto o vegetarianismo é superior, o quanto é socialmente mais correto por não implicar em violência contra um ser vivo. Mas ora, não é exatamente assim. Pelo menos foi o que aprendeu na escola sobre os reinos animal e vegetal. Quem pode afirmar que os vegetais não têm consciência? Claro que têm, a seu modo e de forma que não se compreende, mas têm. Sofrem de violência muito maior que os animais. Os bichos, da maneira que podem, mostram seu descontentamento quando alguém decide, por eles, que chegou sua hora de fazer parte da cadeia alimentar. Já os vegetais, coitados, nem ao menos podem se mexer. Talvez seja o caso de se alimentar de pedras.

sábado, 19 de novembro de 2011

Parker Vacumatic


Escrever era tudo que ele queria. Não que tivesse, ou julgasse, ter alguma coisa a falar, mas pela simples vontade de encher de letras a folha. Só queria executar o movimento. Sujar o papel. Sentir a mão correndo sobre a folha branca, deixando um rastro preto de nanquim, que a olhos treinados há de ter algum significado distinto, mas que para ele, naquele momento, era unicamente o prazer de escrever. Ouvir o ruído áspero da ponta da pena no papel. Experimentar sensação igual à que alguém, seu avô, talvez, teve ao realizar a mesma operação. Teria o avô parado para pensar que, dali a muitos anos, um neto estaria empunhando a mesma caneta, abastecido o reservatório de tinta e saído a escrever? No entanto, o avô, quem sabe porque fosse uma atividade natural, sequer pensou a respeito nas tantas vezes em que a utilizou. Apenas a tinha para compor suas cartas, bilhetes, assinar trabalhos e cheques. E nem foi pensando a esse respeito, também, que o avô presenteou a caneta à filha quando ela terminou o colégio e entrou na faculdade (canetas eram símbolos marcantes antes do advento das esferográficas). E a mãe a deu ao filho não exatamente quando ele entrou na faculdade, mas quando saiu. Aí, quem sabe, já existia uma intenção remota de juntar todo mundo. A mãe pensando no filho, que usaria a mesma caneta do avô e, depois, seria o neto ou a neta. Colocou a tampa na caneta e a deixou sobre o papel. Era hora de retomar a conversa com a esposa a respeito de filhos e planos para o futuro.