Todo mundo tem sua hora de diabo, que fica marcada para a
vida inteira, por mais que tente esquecer. Às vezes se tem a chance de cair na
realidade e voltar atrás, mas em geral a gente se afunda até o pescoço e só acorda
quando não resta mais nada a ser feito.
– Não ficou bonito?
– É, ficou.
– Não falei? Para que pagar uma grana para uma dessas
empresas vir aqui e fazer o mesmo que nós, ou pior. Com o dinheiro economizado
dá para decorar o salão de festas. E fazemos nós também, porque esses
arquitetos são muito careiros.
Nunca havia utilizado o revólver antes. Só tirava do armário
para a manutenção. Andava pensando em me desfazer dele. Afinal, as crianças
estavam crescendo, e Deus me livre que alguma delas encontrasse a arma no
armário e pegasse para brincar. Mesmo não guardando carregado, sempre haveria o
risco. Basta assistir televisão para saber como carregar um revólver. Já tinha
ouvido sobre alguns acidentes de crianças que se mataram com a arma dos pais,
usando como se fosse um brinquedo. Nem fui eu quem a comprou, ganhei de
presente de casamento, de um cunhado, militar. Ele dizia que um homem de
verdade tinha que andar armado. Cada ideia. Sempre fui uma pessoa de boa paz. É
verdade que tem vezes que a gente se irrita com algumas bobagens, explode, é
normal, mas comigo era difícil de acontecer.
– Pai, rápido! O filho do vizinho do 301 estragou todas as
flores que a gente plantou.
O jardim estava revirado, com marcas de pneus de bicicleta
por toda parte. O garoto não estava mais ali. Sem alternativa, só restava bater
na porta do apartamento. Era um vizinho novo, enorme e com jeito de quem
gostava de aproveitar o seu tamanho avantajado.
– Não quero saber de nada. De que adianta um pátio se as
crianças não podem aproveitar. Para que serve este jardim? Para as tuas visitas
acharem bonito? Meu filho vai brincar onde bem entender.
– É melhor que não.
Ele mal escutou o que eu disse, pois já tinha batido a porta
na minha cara. Voltei para casa indignado. Tirei o revólver do armário,
carreguei e o escondi na cintura, por trás, embaixo da camiseta. Até hoje não
entendo porque fiz aquilo, devia estar pressentindo o pior. Fui para o jardim e
comecei a plantar novamente as flores amassadas.
Não demorou muito e o guri retornou com a bicicleta. No
início apenas dava voltas sobre o piso de cimento. Aos poucos foi invadindo a
grama e os canteiros. Talvez fosse impressão minha, mas parecia que ele me
olhava com um jeito desafiador, a cada atropelada que dava nas flores. Tudo que
eu queria era arrumar o jardim sossegado, descansar a cabeça. Por que tinham
que existir esses chatos? E ele continuava a dar voltas, cada vez mais perto
das flores. Acabei gritando para ele.
– Será que tu pode parar de estragar o jardim?
– Meu pai disse que eu podia andar onde quisesse.
– Mas não pode.
Disse aquilo e, ao mesmo tempo, tomei sua bicicleta e a
tranquei na garagem. Acho que está lá até hoje. O menino subiu correndo e foi
chamar seu pai. Em minutos, estavam de volta.
O grandalhão chegou me peitando. Ele estava pronto para me
encher de porrada. Num instante, já tinha enfiado a arma no seu nariz. Ele
ficou branco, um fantasma, começou a gaguejar.
– Ô, vizinho! Que é isso?
– Quem é que vai me dar porrada agora? Tu acha que eu sou
louco para sair no braço contigo? Olha o teu tamanho!
– Pera aí, cara. Vamos conversar.
– Agora quer conversar? Quando eu quis conversar tu bateu a
porta na minha cara.
Puxei o cão do revólver, com o som metálico do mecanismo ele
estremeceu. Um peteleco no gatilho, e haveria um monte de merda espalhada na
calçada.
– Ainda não ouvi o teu pedido de desculpas.
– Desculpa.
– Hein? Não ouvi! Fala mais alto.
– DESCULPA.
– Não quero mais saber do teu filho estragando o jardim.
– Certo, certo.
Virei as costas e fui entrando no prédio, quase voltando ao
meu estado de consciência normal. Chegando na porta, escuto o seu murmúrio.
– Cagão. Aposto como não tem coragem de atirar.
Ele estava errado. Merda de vizinho. Acho que não teria sido
uma grande perda. Mas foi pior, o filho dele se atravessou na minha frente.