quarta-feira, 24 de setembro de 2014

As flores do jardim

Todo mundo tem sua hora de diabo, que fica marcada para a vida inteira, por mais que tente esquecer. Às vezes se tem a chance de cair na realidade e voltar atrás, mas em geral a gente se afunda até o pescoço e só acorda quando não resta mais nada a ser feito.
– Não ficou bonito?
– É, ficou.
– Não falei? Para que pagar uma grana para uma dessas empresas vir aqui e fazer o mesmo que nós, ou pior. Com o dinheiro economizado dá para decorar o salão de festas. E fazemos nós também, porque esses arquitetos são muito careiros.
Nunca havia utilizado o revólver antes. Só tirava do armário para a manutenção. Andava pensando em me desfazer dele. Afinal, as crianças estavam crescendo, e Deus me livre que alguma delas encontrasse a arma no armário e pegasse para brincar. Mesmo não guardando carregado, sempre haveria o risco. Basta assistir televisão para saber como carregar um revólver. Já tinha ouvido sobre alguns acidentes de crianças que se mataram com a arma dos pais, usando como se fosse um brinquedo. Nem fui eu quem a comprou, ganhei de presente de casamento, de um cunhado, militar. Ele dizia que um homem de verdade tinha que andar armado. Cada ideia. Sempre fui uma pessoa de boa paz. É verdade que tem vezes que a gente se irrita com algumas bobagens, explode, é normal, mas comigo era difícil de acontecer.
– Pai, rápido! O filho do vizinho do 301 estragou todas as flores que a gente plantou.
O jardim estava revirado, com marcas de pneus de bicicleta por toda parte. O garoto não estava mais ali. Sem alternativa, só restava bater na porta do apartamento. Era um vizinho novo, enorme e com jeito de quem gostava de aproveitar o seu tamanho avantajado.
– Não quero saber de nada. De que adianta um pátio se as crianças não podem aproveitar. Para que serve este jardim? Para as tuas visitas acharem bonito? Meu filho vai brincar onde bem entender.
– É melhor que não.
Ele mal escutou o que eu disse, pois já tinha batido a porta na minha cara. Voltei para casa indignado. Tirei o revólver do armário, carreguei e o escondi na cintura, por trás, embaixo da camiseta. Até hoje não entendo porque fiz aquilo, devia estar pressentindo o pior. Fui para o jardim e comecei a plantar novamente as flores amassadas.
Não demorou muito e o guri retornou com a bicicleta. No início apenas dava voltas sobre o piso de cimento. Aos poucos foi invadindo a grama e os canteiros. Talvez fosse impressão minha, mas parecia que ele me olhava com um jeito desafiador, a cada atropelada que dava nas flores. Tudo que eu queria era arrumar o jardim sossegado, descansar a cabeça. Por que tinham que existir esses chatos? E ele continuava a dar voltas, cada vez mais perto das flores. Acabei gritando para ele.
– Será que tu pode parar de estragar o jardim?
– Meu pai disse que eu podia andar onde quisesse.
– Mas não pode.
Disse aquilo e, ao mesmo tempo, tomei sua bicicleta e a tranquei na garagem. Acho que está lá até hoje. O menino subiu correndo e foi chamar seu pai. Em minutos, estavam de volta.
O grandalhão chegou me peitando. Ele estava pronto para me encher de porrada. Num instante, já tinha enfiado a arma no seu nariz. Ele ficou branco, um fantasma, começou a gaguejar.
– Ô, vizinho! Que é isso?
– Quem é que vai me dar porrada agora? Tu acha que eu sou louco para sair no braço contigo? Olha o teu tamanho!
– Pera aí, cara. Vamos conversar.
– Agora quer conversar? Quando eu quis conversar tu bateu a porta na minha cara.
Puxei o cão do revólver, com o som metálico do mecanismo ele estremeceu. Um peteleco no gatilho, e haveria um monte de merda espalhada na calçada.
– Ainda não ouvi o teu pedido de desculpas.
– Desculpa.
– Hein? Não ouvi! Fala mais alto.
– DESCULPA.
– Não quero mais saber do teu filho estragando o jardim.
– Certo, certo.
Virei as costas e fui entrando no prédio, quase voltando ao meu estado de consciência normal. Chegando na porta, escuto o seu murmúrio.
– Cagão. Aposto como não tem coragem de atirar.

Ele estava errado. Merda de vizinho. Acho que não teria sido uma grande perda. Mas foi pior, o filho dele se atravessou na minha frente.

11 comentários:

  1. Tem vizinho que não respeita mesmo o espaço dos demais!
    Viver com tranquilidade é a melhor forma e não vale a pena violência, pois violência gera violência, sou a favor da paz sempre!
    Bjus
    http://www.elianedelacerda.com

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  2. Gostei Nelson, bem ao teu estilo. Que bom ler um conto novo.
    Mas porque um cunhado daria ao noivo uma arma de presente de casamento, kkkk
    Bjs, Julia.

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    1. Julia,
      Há horas (na realidade, anos) que deveria ter respondido ao teu comentário. Esse fato, curiosamente, foi tirado da realidade.

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  3. Beleza, Nelson! e o melhor é que nos teus escritos a criação se mescla com a nossa realidade.
    Abração,
    Ricardo

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  4. Gostei do teu conto! Confunde com a realidade.. de cabeça quente , muitas vezes acaba gerando arrependimento. Abração. Rejane

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  5. Muito bom!!! Gostei demais do final...

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  6. Eu lembro desta.
    Está no teu livro, certo?
    Abração.\

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    1. Sim, está no "Balas...". Mas recebeu uma pequena lipo antes de entrar no blogue.
      Abraço.

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  7. Passando pra desejar um ótimo final de semana!
    Quando tiver post novo, avise-me!
    Bjus
    http://www.elianedelacerda.com

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