quinta-feira, 28 de abril de 2011

A cabeça de Ramiro Vargas

Ela só me falou isso: quero a cabeça do Ramiro Vargas. Não disse mais coisa alguma, nem perguntou quanto custaria, mas não posso cobrar demais, senão perco a freguesia e essa gente sempre tem algum trabalhinho. Falei que tudo bem, não costumava recusar serviço, mas que precisava de mais informações. Continuou muda, só apontou para a escrivaninha, tinha um livro. O autor, Ramiro Vargas. O título do livro era comprido: Balas de Coco e Outras Histórias Amargas. Na orelha havia uma foto do cara: branquelo, olhos de turco, umas olheiras de quem passa a noite acordado, nariz um pouco grande, careca e de brinco. Um tipo estranho.
Uma coisa que estava me incomodando era essa história de levar a cabeça. Por que não pediu só um dedo, uma mão, uma foto do cara morto? Uma cabeça é pesada e faz muita sujeira com aquelas melecas escorrendo. Quando trabalhei numa avícola, já não gostava. Terminava o dia com os braços cansados daquele movimento: a esteira trazia o frango pendurado, eu apoiava o pescoço na mão esquerda, emborrachada, e cortava com a mão direita. Fazia isso no tempo que vivia na colônia, só que primeiro torcia o pescoço do bicho, depois cortava a cabeça. Cabeça de homem não é que nem cabeça de galinha. Lembro que, uma vez, a fábrica estava mandando os frangos para a Arábia — os bichos tinham que morrer virados para Meca. Nem sei onde fica, só nos disseram isso. Mudaram toda a linha de produção e, para cada um que passava, o árabe que fiscalizava dizia uma frase na língua deles. Engraçado lembrar disso, o escritor tem cara de turco. Turco e árabe é tudo a mesma coisa, mas cabeça de homem não é que nem cabeça de galinha.
Se ela tivesse dado alguma pista, ajudaria. Mas não, ficou com aquela cara fechada apontando para o livro. Acabei procurando a editora. Lá não quiseram informar o endereço do escritor, não imaginava que seria mesmo fácil. Cheguei a pensar que teria de fazer campana na editora, mas tive idéia melhor. Disse que desejava muito um autógrafo dele no meu livro, àquela altura já o considerava meu, e então, a recepcionista foi mais simpática. Falou que, se era isso, não havia com o que me preocupar, que eu estava com sorte, pois na outra semana haveria uma sessão de autógrafos e até me deu a data e o nome da livraria.
No dia seguinte peguei um adiantamento com o meu pagador, porque a parte mais chata, localizar o escritor, estava resolvida. Enquanto esperava o dia da sessão, resolvi ler o livro do turquinho. A primeira história era sobre um matador, que nem eu, que gostava de balas de coco. De onde o louco tirou essa idéia idiota? Balas de coco, coisa de boiola. Onde já se viu um matador boiola? Eu gosto é de churrasco e uma boa cervejada. No fim do livro o matador aparece de novo, e ainda arrumou um gato de estimação. Não falei que o cara era boiola? Matador com gato de estimação, onde já se viu? As outras histórias eram diferentes, mas sempre com algum morto ou outra maluquice. Tinha até uma história de uma porta que andava pela casa. Acho que querem a cabeça dele é para examinar, porque é doido mesmo.
Nunca fui numa sessão de autógrafos. Na realidade, era a segunda vez que entrava numa livraria. Resolvi me vestir direitinho mas, na hora, vi que não era preciso, encontrava-se de tudo. Achei bem animado o negócio. Tinha garçom servindo champanha — nacional — e balas de coco. Se fosse eu, não serviria bebida para toda aquela gente. Tomei umas quatro taças e, quando vi, estava puxando assunto com uma mulher na fila de autógrafos. Naquela hora não tinha idéia de como isso me seria útil. A gente ficou conversando sobre o livro. Ela também já tinha lido. O assunto seguia e eu de olho no escritor. A fila continuava grande, ainda levaria uns bons minutos. Chegou a vez da mulher, o escritor puxou assunto, parece que se conheciam. Ele disse que estava esperando por ela, mais tarde — fiz de conta que não ouvi esta informação. Na minha vez, sorriu, perguntou meu nome, fez uma dedicatória. Não resisti e lhe disse que o assassino dele não colava. Ele apenas sorriu, meio sem graça. Saí da fila e a mulher se aproximou. Estava enxugando uma taça e já tinha outra na mão, que não era para mim. Peguei duas taças com o garçom, pensando em passar uma para ela, assim que esvaziasse a sua. Perguntei se ela não queria sair dali, para comer e beber alguma coisa e continuar a falar sobre o livro. Surtiu efeito. Ela me olhou bem nos olhos, deu um sorriso e disse, com a voz engrolada, que a conversa estava mesmo boa, que seria bom continuar. Então, ela perguntou se eu não queria ir à festinha no apartamento do escritor. Claro que topei. Só não sabia como ia fazer para me livrar dela. Depois daria um jeito.
Chegamos no apartamento, antigo e sem elevador, mas de peças amplas. Numa, tinha uns casais dançando, em outra, um pessoal conversando. Minha amiga se aboletou num sofá a apagou. Não podia ser melhor. Estavam todos muito entretidos, nem perceberam minha presença. Fui para área de serviço e fiquei escondido no quarto de empregada, transformado em depósito de quinquilharias.
Por volta das quatro da madrugada, preparo minhas coisas. Desamarro a faca da perna direita e a tiro da bainha. Está no ponto, basta colocar um pouco de força para abrir uma goela. Tiro o saco que vinha amarrado na perna esquerda, já não agüentava mais de calor. A casa está vazia, fede a cigarro e a bebida derramada. Entro no quarto dele, tem uma luz acesa a um canto. Sigo naquela direção, não o encontro. De repente, escuto sua voz.
— Procurando por mim?
Está em frente à porta do banheiro. Mostro a faca para ele. Diz não ter muita coisa de valor, gagueja. Falo que não é nada disso, que vim para levar a sua cabeça. Ele nem se interessa em saber quem me contratou. Comentou, sem muita emoção, que não imaginava merecer tanto. Só pediu que eu contasse a minha história. Agora ele está na frente do computador escrevendo sem parar. E eu aqui, parado com a faca na mão, feito um bobo.

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