quinta-feira, 28 de abril de 2011

Balas de coco

Sempre fui muito sensível a cheiros e a sabores, teria sido um bom cozinheiro. Sou capaz de fazer qualquer prato sem necessidade de receita, bastando ter experimentado uma única vez. É uma pena que tenha descoberto este dom bem depois de ter escolhido a atual profissão, que toma bastante do meu tempo, mas paga bem.
Numa ocasião destas, um trabalho me trouxe à cidade natal, após anos de ausência. Conheço todas as cidades onde estive, só pelo cheiro. Sabia que estava de volta, nem precisava de olhos para confirmar. Era familiar do tempo de criança, quando retornava do colégio para a casa. Vinha pela José Bonifácio ladeando a Redenção, fazia a curva pela frente da igreja, nem lembro de qual santo ou santa, e entrava na Osvaldo Aranha. Passava pelo Pronto-Socorro seguindo em direção à Protásio Alves. Uma parada na Ramiro, entrando no Armazém Aço Verde para comprar balas de coco. Vinham embrulhadas num papel cor-de-rosa, com umas franjinhas. As balas se desmanchavam bem devagar quando mordidas e grudavam de leve nos dentes, e o sabor doce do coco se espalhava pela língua. Nunca mais havia experimentado balas como aquelas. Para mim, sempre tinha destas e de mais outras, num pote de vidro na casa da tia. Vantagens de sobrinho predileto. Seguia pela Protásio, passando pelo Hospital de Clínicas em construção, e logo mais já estava passando pelo Cine Atlas.
Já fazia tanto tempo. Naquela época ainda sonhava, pensava que seria alguma coisa de bom. Numa hora queria ser jogador de futebol, noutra, médico. Para o futebol faltou talento e para a medicina, determinação. Nem uma coisa, nem outra, acabei virando um cão de aluguel, servindo a quem quer que me pague – e pague bem, diga-se – por um trabalho sujo.
A primeira coisa que fiz, quando cheguei à cidade, foi procurar o Armazém Aço Verde. Para o trabalho, tinha tempo suficiente. Corri atrás das balas como se estivesse atrás de uma infância perdida. No fundo, era isso mesmo, mas de qualquer maneira, queria experimentar de novo daquele sabor. O armazém não existia mais. Resolvi procurar nos supermercados, coisa que não falta nesta cidade. Todos muito bonitos, com funcionários atenciosos, mas as balas, um engodo, quebradiças e açucaradas. Depois de uma razoável perda de tempo, já era hora de cuidar do meu serviço.
A tarefa consistia em dar um fim num advogado. Não estivesse sempre precisando de dinheiro, faria o serviço de graça. O cliente pagou muito bem, queria uma coisa de cinema, hollywoodiana, com requintes de crueldade. Não é do meu feitio questionar os motivos dos clientes, basta que paguem. Não apreciava envolvimentos emocionais com eles ou com o objeto de seus desentendimentos. Achei que seria mais fácil colocar outro advogado contra a vítima. Não gostava de crueldade. Preferia eliminar os desafetos dos meus clientes como fazia com os cachorrros, um tiro na cabeça e pronto. Rápido, limpo, indolor.
Em uma semana de observação, já tinha um levantamento completo do futuro morto. Morava com a jovem esposa numa casa boa, bairro fino, pouco movimentado. Não tinha mistério. A vítima se achava segura atrás dos muros altos e uma cerca elétrica. Lá dentro, dois grandes Rotweillers de aparência pouco hospitaleira. Esse pessoal não entende que, para cuidar de uma casa, não pode ser cachorro. Para o serviço providenciaria uma cadela no cio, depois me livraria dela.
Meu único problema era escolher a maneira de eliminar o advogado. Resolvi deixar a decisão para o momento. Chegaria na casa dele mais cedo, prenderia sua esposa quando ela retornasse da ginástica, e o aguardaria. Um plano simples, como normalmente deve ser. Esperei cerca de duas horas após os empregados sairem, peguei meus apetrechos e subi num ponto escondido do muro. Icei a cadela e a soltei no jardim florido, que exalava o perfume dos jasmineiros. Os cães correram atrás da bichinha como mosca no mel, nem perceberam quando cheguei perto deles. A zarabatana não falha nunca. Uma ampolinha cheia de Zoletil em cada um, e eles ficariam dormindo por um bom tempo. A cadela me fitou com os olhos aguados, como se agradecesse por tê-la livrado dos peso-pesados. Coloquei-a de volta para a rua, onde sua breve paz seria perturbada por outros cachorros. Se tivesse sorte, seriam menores do que esses. Entrei na casa e dirigi-me ao quarto.
Cheguei sem fazer barulho e tive uma grande surpresa. A mulher estava deitada na cama, nua, muito bonita, nem percebeu minha presença. Roupas de homem sobre a poltrona bergére indicavam o motivo de ter faltado à ginástica. Improvisei um plano em segundos, e que, ainda por cima, agradaria o meu cliente. Não seria tão cruel, mas bastante escandaloso. Gastei dois tiros nela, para dar um aspecto amador à cena. Sentei-me na bergère e aguardei seu companheiro sair do banho. Com mais dois tiros, só restava esperar o corno. Não foi à toa que ela tratou de arranjar um amante, pois o marido chegou bem tarde. Coloquei o infeliz sentado na poltrona e o suicidei.
Terminado o serviço, saí tranquilamente em direção à cozinha. Um pote de cristal na sala de jantar chamou minha atenção pelo seu brilho rosáceo. Atraído, levantei a tampa para olhar melhor o seu conteúdo. Uma mordida leve para experimentar a textura foi suficiente. Não havia dúvida, eram elas. Quanta desatenção, deveria ter feito uma revista na casa antes de subir ao quarto.
Procurei uma sacola, coloquei-as dentro e fui embora, sem descobrir onde elas podem ser encontradas

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Este é um dos meus contos favoritos e, talvez, o mais importante. A primeira vez que entrei em um concurso literário foi com ele, e ainda fiquei entre os finalistas (Prêmio Revelação Literária Nova Prova 20 Anos). Foi ele, também, que puxou o nome do meu primeiro livro, publicado em 2004 (Balas de coco e outras histórias amargas).

3 comentários:

  1. Este é o que eu mais gosto! E tenho até autógrafo... Chique D+
    Bjs,
    S.

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  2. Nelson, o Armazém Aço Verde era do meu avô e depois, do meu pai. As inesquecíveis, maravilhosas e deliciosas balas de coco eram feitas por um tio da minha mãe. Boas lembranças! Leila

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    1. O Aço Verde está entre as boas coisas que nossa cidade perdeu. E balas de coco como aquelas, há muito desisti de encontrar. Que bom que o conto te trouxe boas lembranças, fiquei muito feliz por isso.
      Um grande abraço.

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